terça-feira, 4 de maio de 2010

Nova ótica para temáticas recorrentes (Fernando Veríssimo)

"Se é possível eleger uma característica que melhor represente o conjunto da produção brasileira pós-retomada, a mais importante, sem dúvida, há de ser a renovação de temas e abordagens que acompanha o surgimento de novos realizadores. Ao partir em busca de materiais que fugissem do lugar-comum, os diretores estreantes deixaram sua marca na cinematografia nacional com uma verdadeira torrente de novas propostas.
À medida que o número de estreantes foi crescendo, um novo discurso-clichê que surgiu na retomada (a 'diversidade') foi sendo superado, de modo que deixou de ser um constrangimento para a nova geração voltar àqueles outros temas e lugares. Ressurgem as temáticas de viés social, tais como migração interna, violência urbana, miséria, alienação. No entanto, o que mais chama a atenção nesses filmes é o deslocamento da matriz discursiva, do geral para o específico: filtrados pela ótica dos jovens realizadores, esses temas são entrecortados por uma visão personalista, que se coloca à distância das cartilhas do cinema de gênero e de um certo modelo de cinema político.
Em tempos, pois, propícios à valorização de produções regionais representativas, Cafuné, que marca a estréia de Bruno Vianna na direção de longas-metragens após longa e bem-sucedida carreira como curta-metragista, surge como um raro filme legitimamente bairrista, mas no bom sentido, aquele que defende com entusiasmo os interesses da sua terra. Não é um filme sobre o Brasil, ou ainda um daqueles filmes que se pretendem 'universais'. O dado mais impressionante de Cafuné é sua carioquice, e, mais que isso, o olhar crítico que só um apaixonado pela cidade poderia expressar sem parecer fajuto.
O que vemos na tela é um Rio de Janeiro cinzento, labiríntico, opressor, que não oferece fuga a seus habitantes, imersos e perdidos nas ruas escuras e vazias, refugiados e enclausurados em seus carros e condomínios. Vianna constrói os espaços de seu filme sem a pressa típica de quem expõe uma tese e vai além, invertendo o sinal para centrar seu filme num discurso sobre aproximações, e não distanciamentos. Cafuné é, essencialmente, como revela seu título, um filme sobre o afeto.
Como o é, também, Mina de Fé - premiado curta-metragem incluído neste programa. É um filme sobre a perda da inocência, em que a realidade brutal chega, de forma súbita, para interromper o sonho da protagonista. Ali, onde a favela ganha contornos míticos, se desenrola um drama banal, igualmente conduzido com delicadeza e atenção à lógica implacável que rege o destino de suas personagens.
Uma imagem recorrente de Cafuné, a das montanhas enevoadas que servem de fundo à trágica história do casal de protagonistas, é insistentemente intercalada à narrativa, à guisa de pausa poética ou de guinada simbólica (algo que se revela com mais clareza na seqüência final). Essa imagem lúdica, de majestosa imutabilidade em constante transformação, liberta, ao mesmo tempo, cenário e personagens de seus destinos para inseri-los em território metafísico, exercício notável de um realizador que tem muito a oferecer ao cinema brasileiro."

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