Quando foi lançado, O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas pairava como um objeto não facilmente identificável sobre a cinematografia brasileira. Reconhecíamos no filme de depoimentos e na reverberação político-social dos dramas pessoais alguma coisa de Eduardo Coutinho e, no corpo-a-corpo com a realidade mundo-cão do banditismo urbano, outro tanto do trabalho de Octávio Bezerra em Uma Avenida Chamada Brasil. Mas havia ali uma pulsação diferente.
A apresentação ao ambiente periférico onde vivem o matador Helinho e o músico Alexandre Garnizé não se dá pela exibição distanciada de uma paisagem. A primeira seqüência apresenta um ponto de vista, que é o do próprio filme, à medida que a câmera corre pelos becos de um bairro pobre. É uma câmera que respira, ofegante, que produz ruído de passos pela rua. Mais que um filme sobre o estado da juventude recifense (e brasileira) na virada do século 21, O Rap do Pequeno Príncipe é, ele mesmo, personagem desta história – também jovem, também perdido em becos sem saída.
No filme de Paulo Caldas e Marcelo Luna, a figura do adulto aparece sempre investida de algum constrangimento. O delegado da cidade demonstra franca perplexidade diante da escalada de violência. A mãe do bandido, por medo de exposição, nunca é mostrada de rosto inteiro. O radialista não disfarça sua demagogia sensacionalista. Essa juventude de O Rap do Pequeno Príncipe assumiu para si a tarefa de remediar um mundo que vê como doente, e não é o peso da maturidade ou a experiência acumulada nos anos que explicará as bases em que esta nova geração está se construindo.
Nesse sentido, a presença do rap no filme é significativa. Ainda que possa ecoar no passado (casa-se perfeitamente à tradicional embolada, como diz Garnizé), o rap é uma peça do agora, instrumento primeiro, e mais eficiente, da manifestação dessa juventude. Uma pequena digressão do filme, saindo do movimento hip-hop recifense para encontrar os Racionais MCs, em São Paulo, revelará o impacto da presença desta nova geração na cultura do país. Ela não só reescreve a versão oficial da História (o relato em primeira pessoa do massacre do Carandiru, na letra de “Diário de um Detento”), como também leva à linha de frente das discussões todo um universo social que estava excluído do mapa (o plano aéreo dos bairros da periferia paulistana, aparentemente indistintos, mas que Mano Brown vai nomeando um a um, fazendo valer uma identidade até então ignorada). A urgência dos problemas de nosso tempo não dá chance à imaginação, como diz outro dos encapuzados. “A gente tem é que acontecer”.
Esse primado da ação se expressa no projeto social que Garnizé dirige a crianças carentes, e explode (injustificável) no acúmulo de mortes nas costas de Helinho, em nome de uma idéia confusa de justiça e senso de comunidade. O nó dessa equação se agiganta na experiência da juventude aburguesada de O Último Raio de Sol. Há um extrato dessa geração que não reverbera suas ações numa vontade coletiva, mas, ao contrário, está afundada no niilismo, na subjugação do outro (não apenas as “almas sebosas”, mas qualquer alma que cruze o caminho). Os protagonistas do curta-metragem de Bruno Torres representam incógnitas morais ainda mais devastadoras que os matadores do longa. Num mundo povoado de ícones e referências culturais espalhadas pelos meios de comunicação, do Steven Seagal citado por um encapuzado ao Che Guevara tatuado nas costas de Garnizé, O Rap do Pequeno Príncipe nos apresenta uma juventude que quer responder ao chamado da História criando para si uma iconografia própria, uma nova linguagem que consiga lidar com os novos tempos. Mas O Último Raio de Sol vem lembrar que também faz parte desse caldeirão a figura do super-homem intocável pela lei ou pela ética, e que, protegido pelo dinheiro, só consegue se relacionar com esses novos tempos através de velhos barbarismos.
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