Rodrigo de Oliveira
Em A origem dos bebês segundo Kiki Cavalcanti somos apresentados a Kiki Cavalcanti, uma criança encantadora e sobre a qual é impossível ter qualquer controle. Criada num ambiente atribulado devido às constantes brigas dos pais e à ascendência do irmão endiabrado, Kiki trabalha dentro de si essas influências e ali, em sua cabeça explodindo de conexões cuja lógica é toda particular, temos entrada proibida (ainda que Anna Muylaert sempre insista, e muito bem, no contato com o imaginário infantil. Basta olhar seu trabalho na criação de séries como No mundo da lua, Castelo rá-tim-bum ou Um menino muito maluquinho). O que podemos ver são as manifestações do contato de Kiki com o mundo, e sua teoria torta, mas justificada pelas confusões familiares, sobre o nascimento dos bebês. Kiki sustenta um paradoxo fundamental: mantém a visão inocente da infância, mas já está completamente contaminada pelos símbolos da violência.
Sete anos depois, Anna Muylaert retorna à Kiki, e mesmo que seja interpretada por outra atriz-mirim e tenha um sobrenome diferente, a menininha de Durval discos carrega a mesma presença simbólica de antes. É uma questão de confronto de mundos. Primeiro há a vivência estática de Durval e Dona Carmita. O começo do filme nos apresenta esta velha casa paulistana e sua loja de discos como um ambiente analógico que resiste à crescente digitalização ao seu redor. Mas ainda existe o "ao redor", ainda mantém-se um contato com o lado de fora, para o qual Durval e a mãe são perfeitas antíteses. O rigor formal é absoluto: longos planos de câmera parada, estabelecendo a imutabilidade atroz daquela existência (é a mãe assentada na velhice, o filho velho-garoto preso a ela, os flertes com a vizinha que nunca passarão disso). Kiki, esta força que não se controla, que encerra em si a inocência e a violência, chega para mover a vida e, eventualmente, mover a câmera. Uma seqüência simples de conversa na sala ganha fluência pela simples presença da menina: um rodopio em torno da mesa, que empurra Durval e Dona Carmita para os cantos e coloca Kiki no centro deste novo universo criado por ela.
Kiki olha para meia dúzia de ratos de esgoto e diz: "Olha, o Mickey!". Ela é capaz de assimilar qualquer estranheza e transformá-la em doce loucura. Sua presença isolará definitivamente a casa do mundo exterior (e se houver uma incursão por ele, digamos, pelo trânsito caótico de São Paulo, só se for a bordo de uma charrete).
Num filme musical como este, as canções são mais que preenchimento de fundo. No passeio de bicicleta pela casa, cena que equilibra a candura de Kiki com a memória de um passeio similar, do menino aterrorizado em O Iluminado, de Stanley Kubrick, Durval coloca uma música do disco Tim Maia racional. A questão parece bem essa: a tentativa de racionalização (um plano para chamar a polícia) não esconde a irracionalidade latente em todo o projeto (um cavalo no quarto, uma arma, uma parede ensangüentada). Kiki é agente dessa lógica distorcida, e nem Durval, nem Dona Carmita, nem mesmo o próprio filme estão imunes a isso.
Passado todo o pequeno épico buñueliano que se arma dentro da casa, Durval toma tempo para ouvir uma última música antes de abrir novamente as janelas para o mundo. E toca London, London, na voz de Gal Costa. Se a criança é sempre uma caixa de mistérios, e se contra a loucura de sua mãe não há mais o que fazer a não ser se desesperar, a saída é mesmo o exílio emulado por Caetano. Só assim, talvez, Durval consiga se integrar ao que acontece lá fora. Só assim, talvez, ele consiga se misturar aos signos visuais da cidade, como na seqüência de créditos iniciais em que os nomes dos realizadores aparecem misturados a placas e anúncios de rua. Durval briga, no fundo, pelo direito de fazer parte de loucuras mais saudáveis que aquelas de sua pequena e febril loja de discos. Briga pelo direito de exilar-se no mundo real.
*Rodrigo de Oliveira é crítico de cinema, redator e co-editor da Revista Contracampo e colunista do jornal capixaba Século Diário.
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