segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sábado e Viver a vida

Dois filmes, um país
Gustavo Galvão*

Um dia condensado no tempo de um filme. Tanto no longa Sábado (Ugo Giorgetti, 1995) quanto no curta Viver a vida (Tata Amaral, 1991), toda a ação se desenrola ao longo de um dia em São Paulo. E os pontos de conexão entre o títulos reunidos neste programa não se resumem a esse detalhe. Ambos se apropriam de elementos de um cotidiano que beira o surreal para satirizá-lo de volta. Assim se tem um país (o Brasil) condensado em duas comédias desconcertantes. Fala-se muito desse Brasil que ora faz pose de potência, ora se envergonha da própria incapacidade de resolver uma série de problemas sociais e estruturais crônicos. Um país que se deslumbra facilmente com ilusões e que tem por hábito relativizar tudo – sobretudo os problemas.
Ao destrinchar esses e outros paradoxos brasileiros, transformando- os em uma seqüência de estereótipos extraordinários, Sábado é um caso particular. Isso porque Giorgetti não faz média com nada. Tudo o que acontece na trama, no decorrer da filmagem de um comercial de perfume, é explicitamente brasileiro.
Sábado, 8h30. Um prédio degradado no centro da metrópole é tomado por uma trupe de diretores, assistentes, técnicos e bajuladores. A filmagem interdita um elevador e o outro, desgastado por anos de serviço, fica inutilizado de repente – fato que proporciona cenas hilárias com Tom Zé, Otávio Augusto, Maria Padilha e Jô Soares. Impedidos de subir, os moradores e visitantes se contentam em acompanhar os trabalhos no térreo do outrora glorioso Edifício das Américas. Talvez por apatia. Talvez pelo prazer de observar a fauna que muda a rotina do lugar.
São inúmeras as subtramas que se estabelecem desde o começo, quando a diretora de arte vivida por Maria Padilha chega ao prédio. O que resulta disso é uma crítica feroz a uma sociedade que pode até relativizar os problemas, mas sempre esbarra na condição de terceiro-mundista. Nesse contexto, Giorgetti criou uma imagem perturbadora, em que uma assistente de produção joga restos de comida para dois mendigos. O que faz dessa imagem ser tão perturbadora? O gesto da assistente, que trata os mendigos como vira-latas? Os mendigos, que se acotovelam por migalhas? Ou seria a inserção de algo assim numa comédia? É improvável que tamanho contraste não tenha sido pensado. Esse plano acaba por definir o teor político de uma obra à prova de meios-termos.
Em Viver a Vida, no lugar de um edifício no centro de São Paulo, a cidade em si serve de fundo para a história de um office-boy. Ele se aproveita do descuido da chefe para tirar dela uns trocados a mais. O desconcertante nesse caso é a leveza das situações, apesar da carga intrínseca de nonsense e fatalidade. Tata Amaral se porta como uma cronista – que burila o estilo enquanto brinca com os clichês do cotidiano. Ao final do dia (e do filme), surpresa: tudo muda, mas tudo permanece igual. Paradoxal? Não, são coisas do Brasil.

* Gustavo Galvão atuou no jornal Correio Braziliense como crítico e repórter, entre 1996 e 2003. Formado em jornalismo pela Universidade de Brasília, fez especialização em cinema na Espanha. É curador de mostras audiovisuais e dirigiu sete curtas de ficção, entre eles o premiado A vida ao lado (2006), exibido em 25 festivais no Brasil e no exterior

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